Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

terça-feira, 6 de novembro de 2012

VII Carta à Franz Xaver Kappus


"Roma, 14 de maio de 1904.

Meu caro sr. Kappus,

Decorreu-me muito tempo desde que recebi a sua última carta. Não me guarde rancor por isso; trabalho, incômodos e indisposições impediram-me sucessivamente de dar-lhe uma resposta. Queria que esta lhe viesse de dias tranquilos e bons. Agora me sinto outra vez um pouco melhor (o começo da primavera fez sentir bastante, também aqui, suas transições malignas e caprichosas,), e venho cumprimentá-lo, caro sr. Kappus, e (o que faço com tanto gosto) dizer-lhe, o melhor que posso, algumas coisas a respeito de sua carta.

Como vê, copiei o seu soneto por achá-lo belo e simples e porque nasceu numa forma em que se move com tão discreta correção. Dos versos seus que tenho lido, são estes os melhores. Venho agora oferecer-lhe esta cópia, porque sei como é importante e cheio de novas experiências rever um trabalho próprio copiado pela mão de outrem. Leia os versos como se fossem de outra pessoa e no fundo da alma há de sentir como são seus.

Foi uma alegria para mim reler várias vezes o soneto e a carta, agradeço-lhe ambos.

SONETO

Treme sem queixa por meu coração,
Sem suspiro, uma dor muito sombria.
Só dos sonhos a nívea floração
É a festa de algum mais tranquilo dia.

Tanta vez a grande interrogação
Se me depara! Encolho-me, e com fria
Timidez passo como passaria
Por bravo mar, sem aproximação.

Desce, então, sobre mim turva amargura
Como esses céus cinzentos de verão
Onde uma estrela às vezes estremece.

Tateante, minhas mãos vão à procura
Do amor, buscam palavras da oração
Que meu lábio deseja e não conhece


Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranquila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo não sabem amar: têm que aprendê-lo.

Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos (“escutar e martelar dia e noite”). A fusão com outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles (que deverão durante muito tempo ainda juntar muito, entesourar); são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.

Aí está o erro tão grave e frequente dos jovens: eles – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre eles e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois? Que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam sua comunhão e facilmente chamariam sua felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir. Perde os longes e as possibilidades, troca o aproximar-se e o fugir de coisas silenciosas e cheias de sugestões por uma estéril perplexidade de onde nada de bom pode vir, a não ser um pouco de enjoo, desilusão e empobrecimento. Depois procuram salvar-se, agarrando-se a uma das muitas convenções que se oferecem como abrigos para todos nesse perigoso caminho. Nenhum terreno da experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão de cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata, sem perigos e segura como os prazeres do público.

No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem a sua solidão – e a média fica sempre nisso –, sentem o peso opressivo do erro cometido e gostariam de, à sua maneira, tornar vivedouro e fértil o estado de coisas a que se veem reduzidos. A sua natureza lhes diz que as questões do amor não pode, menos ainda do que qualquer outra importante, ser resolvidas em comum, conforme um acordo qualquer; que são perguntas feitas diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica, estritamente pessoal. Mas como podem eles, que já se atiraram uns aos outros e não mais se delimitam nem se distinguem, quer dizer, que nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já derramada?

Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do mundo a convenção que lhes ocorre (como o casamento), vão dar em outra solução menos clamorosa, mas de um convencionalismo não menos mortal. Eles não têm, de fato, senão convenções em redor de si. Tudo o que parte de uma comunhão mal coagulada é convencional: todas as relações resultantes de tal confusão encerram a sua convenção por menos usual (ou, no sentido  comum, por menos moral) que seja. A própria separação seria aí um passo convencional, uma decisão fortuita e impessoal, sem força nem fruto.

Quem examina a questão com seriedade acha que, como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrada até hoje uma luz, uma solução, um aceno ou um caminho. Não se poderá encontrar, para ambas estas tarefas, que carregamos veladas em nós e transmitimos sem as esclarecer, nenhuma regra comum, baseada em qualquer acordo. À medida, porém, que começarmos a tentar, solitários, a vida, essas grandes coisas se hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverarmos, apesar de tudo, e aceitarmos esse amor como uma carga e um tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós, e isso já será muito.

Até agora conseguimos apenas examinar sem preconceitos, objetivamente, as relações de um ser para com outro, e nossas tentativas de viver tais relações ainda não têm um modelo diante de si. No entanto, o caminhar do tempo traz mais de um auxílio para a nossa indecisa aprendizagem.

A moça e a mulher, em sua nova e peculiar evolução, apenas transitoriamente imitarão os hábitos e o vícios masculinos, só transitoriamente repetirão as profissões masculinas. Depois de passada a incerteza dessa transição é que se poderá perceber que as mulheres não adotaram toda aquela multidão de disfarces (frequentemente ridículos) senão para limpar sua profunda essência das influências deformadoras do outro sexo. A mulher em quem a vida habita mais direta, fértil e cheia de confiança deve, na realidade, ter-se tornado mais amadurecida, mais humana do que os homens, criaturas leves a quem o peso de um fruto carnal não fez descer sob a superfície da vida e que, vaidosos e apressados, subestimam o que pensam amar. Essa humanidade da mulher, levada a termo entre dores e humilhações, há de vir à luz, uma vez despidas, nas tranformações de sua situação exterior, as convenções de exclusiva feminilidade. Os homens, que não a sentem vir ainda, serão por ela surpreendidos e derrotados. Um dia (desde já predito, sobretudo nos países nórdicos, por sinais fidedignos) ali estará a moça, ali estará a mulher cujo nome não mais significará apenas uma oposição ao macho nem suscitará a ideia de complemento e de limite, mas sim a de vida, de existência: a mulher-ser-humano.

Esse progresso há de transformar radicalmente (muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira) a vida amorosa, hoje tão cheia de erros, numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. Esse amor mais humano (que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto) assemelhar-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.

Ainda mais: não pense que o grande amor que lhe fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou a sua vida.

Todos os meus bons votos para si, caro sr. Kappus.

Seu,

Rainer Maria Rilke"

terça-feira, 26 de junho de 2012

Oração à Hemostasia

A cada ano que nao sorvo magia e nao posso vomita-la em canto;
A cada mes que nao sinto encanto numa tal tensa face intensa enrijecida pelo tempo;
A cada semana que aspiro o perfume ocre do rio morto que corta a cidade;
A cada dia a mostrar os dentes pelas oito horas que escorrem no estabulo; A
A cada minuto que nao ejaculo estrelas;
A cada segundo pensamento, daquele tipo que pondera, prende, amarra, enraiza e inercia;

Inerte: sangro.

Rio.
Sangro.
Rio e sangro em demasia!

Hemorrajo dores.
Coagulo sonhos.
Queria ser agua;
Mas verto vinho.

Enfim, avinagro.
Evaporo.
Remanesço.

Aguardo alegre pelas traças que marcharao sobre a terra;
Pela proxima pagina;
Pelas paredes bordeaux descascadas;
Pelo bolor do teto pinguejante;

Por mim;
Por ti;
Por nos:

Amem.

domingo, 10 de junho de 2012

Tudo bem?

. [silêncio] . [Poucas vezes na vida se pode ter o privilégio de ouvir poesias em diálogos. Difícil é ouvir algo interessante hoje em dia. Sempre presos em conversas de elevador. Circunscritos ao estado da meteorologia. Da reforma do prédio. Do falso interesse em como o outro estaria. Como estaria? E o que importa? Perguntar-se-dever-se-ia ao outro: como estou hoje? Soo bem? Quão próximo de uma pintura de Matisse meus cabelos parecem estar nesse momento? Além disso: Uma bela coleção de momentos interessantes. Algumas conversas filosóficas ao nascer do sol na saída do metrô. Sorrisos bobos refletem o gosto de café com chocolates da Côte d'Ivoire. Discutem-se sobre os rumos do país n'um branco banco de ferro. Olhando-se a lua. Jorram-se ideais no firmamento. Todos se divertem na festa à beira da piscina. O engarrafamento casi-fatal ameaça a aventura de pincelar à guache o escuro lago de Lausanne. Um casal infeliz se reencontra em despedida no ponto de ônibus. Um casal infeliz despede-se em reencontro no aeroporto. Suja-se de tinto o vinho da pintura interior. Muitos pássaros voam com o passar do automóvel branco. Sente-se um gosto amargo do outro lado do país. Um filho arrasta a mala de madrugada. Não se acordam os pais. Um cão jaz morto há dias na calçada daquele bairro movimentado. A continuação do filme foi vista antes da primeira. O que nos prende aqui? Mais um quadro de vidro com grafite vermelha se parte na quina de uma mesa qualquer. Uma música há muito não ouvida: também uma valsinha: 'Let me sing you a waltz. Out of nowhere, out of my thoughts'. Òu est ma Simone de Beauvoir? Uma nova canção do porvir. Vontade de engolir o mundo. Ou morder uma maçã-verde bem verde. Há tempos, é tempo de alguma revolução. D'uma ascese que não vem. D'um radicalismo que não chega. Chega. Para mais e para além:]

- Tudo bem e você?

sábado, 21 de abril de 2012

Ilha das Cobras

O que ficaram foram as marcas de seus coturnos impressas na lama. Oito chanfros cada uma com ângulos perfeitos na terra que se enchiam repletamente com as grossas gotas d´água, frias, plúmbeas e pesadas como as agulhas de ósmio que ficavam guardadas na pequena caixa perolada sobre o criado-mudo de seu avô, perto do gramofone de bronze que repousava perto de lá. Perguntava-se se era mesmo o certo prosseguir com seus passos mata adentro, sem se preocupar em revisitar seus próprios rastros, que seriam fatalmente apagados pela erosão pluvial daquela e de outras noites que viriam. Já sob a proteção de imensa folhagem, circundado por gotas mais grossas ainda, acumuladas pela longa viagem caída de copa em copa até chegar no lamaçal do solo, olhou o lago traumatizado pelas bilhões de gotas que caíram naquela noite. Acabou adormecido em posição fetal costumeira, recostado no tronco, indiferente ao perigo oferecido pelo fato de estar na Ilha das Cobras. Acordou no dia seguinte, ironicamente, quando o último pingo molhou a terra já amanhecida pela aurora de um ambicioso sol, gerando um silêncio ensurdecedor enquanto a temperatura começava a aumentar lentamente. Cerrou os olhos ao olhar o sofrido lago, receando vê-lo desfigurado pelo excesso da tormenta da noite anterior, trazendo mais daquilo que justamente o definia como lago. O que enxergou foi sua superfície plana, num espelho que refletia a cor do límpido céu de forma que era quase impossível descobrir onde começava um e terminava o outro, não fossem pelas leves patas dos insetos que caminhavam sobre sua superfície, plena e irrompível. Ousou sorrir de forma também leve, mesmo que torta, ao concluir que o que é feito de substância líquida não pode mesmo ser violado ou marcado pelo que também é líquido. As marcas de suas duras solas de borracha que tanto o orgulhavam em suas aventuras pelas campinas eram alvo fácil para aquilo que sempre acabava por desmanchar tudo de sólido que havia sido construído pela consciência e pelo acaso. Sentiu grande vazio, como sempre, ao ter esses tipos de pensamentos e reencontros consigo. "Como é ser líquido? Como é sentir o impacto severo das marcas da vida e da morte e voltar ao estado letárgico do repouso e do esquecimento?", pensou. Nem mais cheio aquele lago estaria. A água nova se misturou ao lodaçal antigo ou evaporaria pelo calor do sol de outros dias. Levantou-se com dificuldade, apoiado pelas cascas que descolavam do hospitaleiro tronco que o recebeu tão bem por uma noite. Quis resolver que, dali em diante, não gastaria mais suas poucas alegrias em revisitar suas marcas nos solos pelos quais passou, mas achou a empresa difícil demais. Havia perdido o controle. No afã de aprender a se desprender do amor, havia desaprendido a amar. Havia pensado que olhar novamente o lago que sempre o inspirou a buscar a magia da transformação da vida em obra-de-arte poderia ser reconfortante. Quem sabe aquelas águas verdes ainda o reconheceriam. Não só lembrariam das tardes em que entrava nelas nu, mansamente, tateando sua superfície com zelo e anseio em romper toda aquela fluída capa protetora da tensão superficial que sempre escondeu os profundos segredos daquele pedaço escuro e molhado de mundo; não só lembrariam: convidariam para um refrescante mergulho a hidratar seus pulmões com parte de seus mais obscuros segredos. Mas não viu nada disso. Não viu risco à morte nem à vida. Viu um lago que só sabia ser lago. Pior: um lago que só queria ser lago. Inertemente aberto e fechado a tudo e todos. Não tinha a força das rochas imponentes e impenetráveis que jaziam no caminho para as montanhas e tampouco transmitia a beleza fulgente das frágeis flores alaranjadas que se agitavam perto dali com a brisa que soprava do sul. Era um lago que padecia da mesma doença de todas as outras águas, rios, mares, poças ou oceanos: muitas almas podem envenená-los, alterar seus cursos, pescar seus peixes, explorar parte dos seus minerais; mas somente o sol, pela proximidade e pela distância, é capaz de secá-lo ou congelá-lo a seu belprazer. . . . Por já ter passado por lagos secos e arenosos, seguiu sua viagem fugindo dos trópicos em busca de um lago cândido, sólido, mas fofo e maleável, donde poderiam, de quando em quando, surgir talos verdejantes e donde possa, de quando em quando, também deixar as marcas de suas botas ou mesmo usar parte daquela massa branca para fazer esculturas que só serão desfeitas quando o sol brilhar demais, num tempo em que ele já não estará mais lá para ver sua arte transformada - num primeiro ato, em translúcida água; num último, em invisível vapor.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Partidas

Diz a teoria que quando morremos, o mundo deixa de existir. Não só para nós; ele de fato deixa de existir mesmo, porque tudo parece só fazer sentido a partir do ponto de vista do eu. Ainda assim, falamos de Mozart, Cartola, Ricardo, Matisse, Marx, Hesse, Rachmaninoff, Lispector, Nietzsche. Eles se foram há tempos. Nasceram comuns, como todos nós. Choraram, riram, sofreram, caíram no chão, viram o mundo girar na roda-viva da história, homens e crianças tombarem nas ruas, a chuva criar poças d'água lamacentas, a neve derreter na primavera e conversas rasas nas antesalas de casas da classe média. Morreram das mais diversas causas, cedo ou tarde, e foram enterrados em valas comuns ou cemitérios conhecidos. Pouco importa. Foram-se e seus corpos gelificaram e pereceram, assim como os de todos os nossos ancestrais diretos, pais dos pais dos pais dos pais dos pais de nossos pais, há cem, duzentos, trezentos anos.

Foram muitos dos nossos que se foram, cujas vidas, mais ou menos medíocres, foram gastas com trabalho, crimes, violência, escravidão, amor, estupro, embriaguez e mortes gloriosas ou fatais, como aquela tia da avó de nossos avós que morreu engasgada aos oito anos com um pedaço de pão, ou o genro do bisavô do pai da cunhada de nossos avós, que se enforcou porque seu eterno amado sucumbiu à febre tifóide. São pessoas que não existem mais em sentido algum - para ninguém. Além da genética e da educação melhor ou pior de sua respectiva prole, não deixaram legado algum para alguém que pudesse contar sua história, seus pensamentos, sua boa ou má contribuição para o nosso presente. Nem uma viela de uma vila com seu nome. Nada. A história de fato é escrita por muitos guerreiros vencedores, alguns poderosos e poucos artistas.

Quiçá, nem mesmo os ditos gênios da humanidade tenham tido qualquer intenção consciente de sobreviver à morte pela história. Talvez seus nomes venham a significar cada vez menos à maior parte das pessoas. Mas seus nomes e obras sobrevivem no presente para alguns, que replicam o encantamento de suas ideias a cada geração que passa por meio da educação formal, mesmo circunscrita a alguma cultura local ou nacional.

Você de alguma maneira se foi e não sei se significará alguma coisa para o mundo de alguém daqui a 30, 50 ou 100 anos. Para minha história, você existe muito viva, mesmo que eu não venha a compreender bem um tal amor que se dizia sentido ou uma tal saudade que se dizia doída. Para o mundo, quisera eu me tornar ao mínimo um rodapé dos livros de história; você estaria lá comigo. Quisera eu que fosse minha introdução, meu título, meu final, meu grandioso capítulo dramático; talvez, de fato, o destino era que seria também, analogamente à minha megalomaníaca alucinação, meu pequeno, lindo e interessante rodapé.

Nunca entenderei ao certo para onde foi ou para onde irá, mas, por enquanto, minhas páginas permanecem abertas às suas edições, conforme ilumino iludivelmente as sombras do carvão e do ouro que você escondeu nas cavernas escuras e profundas de sua história, que é um pouco minha - cujos detalhes posso tentar entender, mas nunca mais sentir depois de sua partida...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Perguntas ao Meu Amor

O Amor nos enreda em falsa prisão?
Ou é tão somente uma tesa condição?

São paredes sólidas com grosso grilhão?
Destruíveis peça-a-peça pela mão?
Ou consciente pena de Amor sem senão?

Os gênios sobrevivem a dor do Amor que nunca terão?
Ou infertilizam-no em ode ao músculo do coração?

O Amor mata a Revolução?

Ao retirar as selas: quanto tempo até rotar em podridão?
Ao escapar das celas: quanto pesa o pendão da ingratidão?

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Da Minha Liberdade

X: O que é a liberdade para você?

J: A liberdade não é a ausência ou o vácuo de amarras como se costuma se pensar. Estamos todos num sistema fechado de contradições, e só conseguimos fugir de um lugar para outro dentro deste mesmo sistema, mesmo quando achamos que estamos o subvertendo. Quando fugimos do mundo das amarras, das regras, fugimos apenas para um outro mundo de outras amarras: as anti-amarras; e de outras regras: as anti-regras.

X: Ou seja, para você a liberdade também pode ser uma prisão?

J: Não só pode ser como de fato o é. Em verdade, só é possível estar livre apenas em alguma dimensão social, posto que é impossível ser totalmente livre em sociedade. Ao ficar livre dos ditos "relacionamentos amorosos", por exemplo, prendemo-nos em outras regras, as do silêncio do - outro - jogo, as da dissimulação, da superficialidade, do anti-ciúme esquizofrênico, da administração múltipla dos casos, da tentativa-e-erro resiliente, do anti-amor tautológico.

X: Como o conceito de anti-amor se relaciona com essa discussão sobre a liberdade?

J: O anti-amor é o dogma dos seres livres. Aqui, anti-amor não é ódio ou qualquer sentimento ruim ou pretensamente oposto. Aliás, muito pretensamente, pois ódio, raiva, e sentimentos que temos como "ruins" não são ontologicamente opostos ao amor e outros sentimentos tidos como "bons". Todos são igualmente bons e igualmente ruins, sem que isso seja em si um absurdo lógico, pois todos são únicos, e só são valorados em sociedade.

X: Certo, mas se só vivemos em sociedade, faz sentido considerá-los segundo seu valor dado em sociedade, certo?

J: Sim, mas podemos considerar então o anti-amor como o negativo das regras comportamentais em que se joga no tabuleiro dos relacionamentos dos que se iludem em compromissos, presos por laços invisíveis, intangíveis, perecíveis, e improváveis. O anti-amor joga outras regras, as que já mencionei. E ele é tautológico pois, como amor, é propositivo, e como antípoda de si, nega-se infinitamente, inerte em sua existência, por vezes frio, distante, quase morto, mesmo que sempre retocado com traços de ternura e afago, até que algo externo torne a contradição tão grande que ele simplesmente desaparece, dando lugar ao que se chama amor, retornando, em marcha, à prisão da anti-liberdade.

X: E por que ser livre é um exercício?

J: Ora, pois há, em tese, muitos elementos perturbadores dessa contradição tão magnífica que sustenta esse projeto de liberdade. Há muitas lembranças de gozo e prazer a serem sentidas novamente, muita arte a ser contemplada, muitos problemas no mundo a serem resolvidos, muitos amores a serem realmente amados. Ser livre é, então, um exercício: de paciência, de meditação, de rejeição às regras, objetivas e subjetivas, dos imperativos morais e emocionais das relações, de reclusão em si mesmo - fora dos outros.

X: É por isso que as pessoas tem dificuldade em ficarem sozinhas?

J: Sozinho nunca se está. Mas de fato é difícil anti-amar pois há muitos seres encantadores por aí, mesmo que não seja fácil identificá-los. O problema é a incomparabilidade, de um lado, e a invisibilidade, do outro. Além de sermos todos únicos e diferentes, os seres pretensamente livres preferem esconder seus encantos e guardar suas magias e energias para si, para presentear a quem realmente "merece" por algum determinado tempo. Ora, nada mais preso que uma luz que não ilumina, que um rio que não jorra, que uma menina que não chora - e que não faz iluminar, e jorrar, e chorar.

X: E que não ri...

J: Bom, rir é muito fácil, por isso não falei do riso. Todo mundo ri. O tempo todo. O choro sim, de felicidade ou de tristeza, esse sim, é concreto, é vital. Só pessoas especiais merecem nossas lágrimas.

X: Devo admitir que uma entrevista terminando nesse tom não satisfará muito quem a for ler...

J: Pois admita também, junto comigo, que não há nada de mais cretino do que sempre satisfazer a quem nos quer bem e do que buscar nossa vã satisfação o tempo todo. Como quem teve a alma transbordada por outra, eu mesmo já não me satisfaço com qualquer coisa, muito menos com essas palavras que também já me soam vãs. Quando pensamos, não sentimos. E quando não sentimos, somos livres. É um exercício herculiano esse de não sentir. De fato, um grande fardo, suplicante por um chacoalhar de folhas que só venta de quando em quando, de tempos em tempos...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Requiescat in Pace Avia

Laboriosa quando jovem, sisuda mãe e companheira
Criara filhos, netos, cães, sob uma estreita cumeeira
Vira não Vargas, mas uruguaios, a tombar os Guanabários
Temera a farda, a fome, o riso, os sonhos revolucionários
Zelara a vida, a cheia casa, o galo, a prole, o desposado
Cuidara sempre a sua metade, bronc’amor nunca revelado
E jejuara às sextas-feiras a anjos por grã-reverência
E florescera ao fim da idade em grão-modelo de potência

Fora sombria a ventania que trouxera a novidade:
O riso terno e enrugado
Lacrimoso e fatigado
Cansado e cintilado
Muito mais que de repente
Cessara de brilhar

Fora tão cálida a crisálida a esconder nova saudade:
O punho firme e enrijecido
Forjado a tempo em amplo abrigo
Em amor lindo e embevecido
Por muito mais que de repente
Em nós há sempre de brilhar

Assentimento

Há ninguém de querer conhecer os melhores - e quem os são?
ou encontrar os melhores - donde virão? -
que a mim e a ti coexistem

Ainda que sob
o exclusivo egoísta
ponto de vista
de meu e teu eu

Entre bilhões de sentinelas
certeiramente existem
seres melhores a ti-eles-nós-vós-elas

E a este inteiro mundo que almeja só o melhor
- apenas e tão somente
entre aquilo e aqueles
que teve a oportunidade
- ou que se quis -
de conhecer
pela benevolência do acaso do caos

[Ínfima
Dessprezível
Ridícula
Semiinexistente parte
do universo total]

É esta, pois, a nauseante condição do viver de tal vetusta maioria:
"sede felizes com base no que - e em quem - conhecerdes!"

Pois se simples assim, que se brade:
Fecha-te então ao mundo que vai além das conhecidas fronteiras, dos cardápios, das línguas e ruas e não erras!
Condena-te eternamente a 'ser' o 'ser' mais feliz a vagar por estas terras!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A Aurora e o Ocaso

No ocaso da madrugada
quão triste é ouvir de longe
o desconsolo dos ventos púrpuros
ululados pelos corações vazios e covardes
em busca de lampejos de calor e redenção!

Quantas brasas requentadas mais
hão de recolher até que seja possível
arder em plena chama
alta, feroz e veraz
capaz de preencher
com renovada aurora
de luz e vida de outrora
as plúmbeas nuvens noturnas que trouxeram
com opróbrio e sub-repção
a calar todas as estrelas deste firmamento!

E se há tristeza neste mundo
capaz de tal malogro
Donde sói ver nos quatro ventos?
Donde jaz tal ressurreição?
Já que achacai tais vozes surdas
a rogar por tal pendão!

No enregelar de tais suspiros
nada mais há a surpresar

E a drunfar, drunfando afunda este manto carnal
E a cantar, cantando ajunta o que há no final