Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

sexta-feira, 9 de março de 2012

Partidas

Diz a teoria que quando morremos, o mundo deixa de existir. Não só para nós; ele de fato deixa de existir mesmo, porque tudo parece só fazer sentido a partir do ponto de vista do eu. Ainda assim, falamos de Mozart, Cartola, Ricardo, Matisse, Marx, Hesse, Rachmaninoff, Lispector, Nietzsche. Eles se foram há tempos. Nasceram comuns, como todos nós. Choraram, riram, sofreram, caíram no chão, viram o mundo girar na roda-viva da história, homens e crianças tombarem nas ruas, a chuva criar poças d'água lamacentas, a neve derreter na primavera e conversas rasas nas antesalas de casas da classe média. Morreram das mais diversas causas, cedo ou tarde, e foram enterrados em valas comuns ou cemitérios conhecidos. Pouco importa. Foram-se e seus corpos gelificaram e pereceram, assim como os de todos os nossos ancestrais diretos, pais dos pais dos pais dos pais dos pais de nossos pais, há cem, duzentos, trezentos anos.

Foram muitos dos nossos que se foram, cujas vidas, mais ou menos medíocres, foram gastas com trabalho, crimes, violência, escravidão, amor, estupro, embriaguez e mortes gloriosas ou fatais, como aquela tia da avó de nossos avós que morreu engasgada aos oito anos com um pedaço de pão, ou o genro do bisavô do pai da cunhada de nossos avós, que se enforcou porque seu eterno amado sucumbiu à febre tifóide. São pessoas que não existem mais em sentido algum - para ninguém. Além da genética e da educação melhor ou pior de sua respectiva prole, não deixaram legado algum para alguém que pudesse contar sua história, seus pensamentos, sua boa ou má contribuição para o nosso presente. Nem uma viela de uma vila com seu nome. Nada. A história de fato é escrita por muitos guerreiros vencedores, alguns poderosos e poucos artistas.

Quiçá, nem mesmo os ditos gênios da humanidade tenham tido qualquer intenção consciente de sobreviver à morte pela história. Talvez seus nomes venham a significar cada vez menos à maior parte das pessoas. Mas seus nomes e obras sobrevivem no presente para alguns, que replicam o encantamento de suas ideias a cada geração que passa por meio da educação formal, mesmo circunscrita a alguma cultura local ou nacional.

Você de alguma maneira se foi e não sei se significará alguma coisa para o mundo de alguém daqui a 30, 50 ou 100 anos. Para minha história, você existe muito viva, mesmo que eu não venha a compreender bem um tal amor que se dizia sentido ou uma tal saudade que se dizia doída. Para o mundo, quisera eu me tornar ao mínimo um rodapé dos livros de história; você estaria lá comigo. Quisera eu que fosse minha introdução, meu título, meu final, meu grandioso capítulo dramático; talvez, de fato, o destino era que seria também, analogamente à minha megalomaníaca alucinação, meu pequeno, lindo e interessante rodapé.

Nunca entenderei ao certo para onde foi ou para onde irá, mas, por enquanto, minhas páginas permanecem abertas às suas edições, conforme ilumino iludivelmente as sombras do carvão e do ouro que você escondeu nas cavernas escuras e profundas de sua história, que é um pouco minha - cujos detalhes posso tentar entender, mas nunca mais sentir depois de sua partida...