Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Es Muss Sein!

Claro, logo não se despediu. Não poderia ser diferente.

E há tempos hesitara em escrever. Tinha perdido a prática, perdido-se na praxis. Perdido o impetus, o momentum, no continuum, ad nauseam. Havera descoberto que algumas coisas talvez tivessem data para ocorrer no esboço dessa vida sem quadro, afinal. Livros, por ler, sempre poderão ser lidos, não envelhecem, mas os olhos sim: nestes, as córneas se espessam, turvam-se nas vertigens, nas quedas, diga-se, nos desejos de que a queda aconteça. No eterno desejo do eterno retorno, como farsa e como tragédia, levara tempo para ler, sorver - e mais ainda para rabiscar algo que valesse a pena. E cá se foram anos até estar preparado para enxergar e enfrentar a clivagem entre o peso e a leveza.

Noutro dia chuvoso, saudoso do odor ocre das folhas de tabaco enroladas à mão por desconhecidos no além-mar, embotara-se como de costume, embargara a voz, silente, confusa, ouvindo uma canção onde se lia "você só vive duas vezes, uma para você e outra para seus sonhos". 

Ao viver duas vidas, para dentro e para fora, para si e para os sonhos, sempre chamara e chamará Hegel e Marx à baila para bailar, juntos. A naúsea sartreana estivera sempre à espreita e, por vezes, apegar-se aos sonhos de uma vida pretensamente não vivida pode ser vivê-la a fundo em paralelo de outra forma. Ao se desapegar da materialidade do corpo e dos sentidos externos, pode-se, de quando em quando, mergulhar em sensações e viagens do sentido que habitam as profundezas mais escuras, que só fazem sentido naquela imensidão de negro e torpor, e que virariam pó sob o mínimo raio de luz real do sol. De quando em quando, isso acalenta e lembra que se está meio vivo; que decidir todo dia permanecer nesse mundo é um ato de complexidade sufocante, mas que mergulhar nas profundezas de si oferece, por vezes, algum sentido, mesmo que um pouco, aos poucos ou por pouco tempo.

Registrara para si que, sim, não se despediu. Jamais poderia fazê-lo. Como seria possível formalizar o fechamento barulhento de um livro que se quer revisitar ou lembrar para sempre? Naquela estante, cabiam todos os livros do mundo, incluindo poeiras, traças - tudo.

Noutra vez ainda, também sob grave meia-voz, ouvira outro sopro de vida na figura de um trem que parte, sempre, e nunca se alcança: "Oh salgueiro chorão, tossindo meu coração, peça a deus para ver minha sombra, que nos manteve separados por meio de cada revolta ou revelação da minha mente. Você agora acabou de partir, enquanto chego em cada estação. Venha até mim, cedo ou tarde. Aprendi isso por hábito. Agora sei esperar. Venha até mim". As figuras da estação e do trem se misturavam às da felicidade como conteúdo e da tristeza como forma, de Don Juan e de Tristão, da menção à morte de Ana nos trilhos doutro texto, do repetido Franz que remetia à Rilke, tudo então permeava de significados aleatórios diversas folhas daquele atrasado lido livro - que, de fato, fora absorvido em exatos três meses. Percebera finalmente que a conhecera em seus todos outros pseudônimos muito antes de descobrir o verdadeiro nome de Sabina.

Por razão desconhecida, vira sentido naquelas notas musicais ressentidas, apesar das palavras já não terem muito significado: "teve então a vontade confusa e irresistível de uma música enorme, de um barulho absoluto, uma bela e alegre algazarra, que englobaria, inundaria, esmagaria todas as coisas, que anularia para sempre a dor, a vaidade, a mesquinharia das palavras, já que a música era a negação das frases, a música era a antipalavra".

Importante notar: a pausa tem importância ímpar na música - assim como a vírgula no texto, o silêncio na declamação - e, ainda muda, mude-se uma letra, e se muda tudo nela. Enxergara assim: essa longuíssima nota breve, poderá soar como uma quartifusa em mais alguns anos de partitura, ou então um longuíssimo respiro para que se possa ouví-la novamente.

Es muss sein!, diria o maestro. Despedir-se seria imprimir uma barra dupla no papel e passar a viver apenas uma vida, adiantando a parada que o trem inexoravelmente fará na estação kitsch que nos aguarda até a linha final do esquecimento. Resta saber apenas as frases ridículas que estarão inscritas nas respectivas pedras que, no sustentável peso do não-ser, impedirão que voltemos.

Logo, claro, não se despediu. Não poderia ser diferente.