Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Amaranto


“Tumbleweed, you are just a boy, with a bottle of wine trespassing your head, dealing with the fermentation of your decaying neurons”, lia-se na faixa negra amarrada ao pulso, amargo lembrete.

Mas, olhou as folhas ao redor e recordou porque subiu, porque desceu, da videira: lampejos de encantamento; riscos no firmamento – estrelas cadentes encantadoras rabiscando de um azul muito peculiarmente escuro, cianesco, um breu que enche a dita alma de exasperação; momentos de sentido. Gotas espessas de prazer hedonista inédito e inaudito. A chuva molhando o rosto com cheiro de relva que lembrava a Toscana italiana, mas eram apenas as Minas Gerais brasileiras. Contos breves, mas de genialidade ímpar, daqueles que voltam à mente aos 80, 90 anos, justificando que, também por isso, a vida valeu, de alguma forma, a pena. Alguns chamam – clamam – tratar-se de feroz e veraz paixão, daquelas fugazes que duram exatos trimestres, segundo especialistas, mas.

Paremos aqui. Rabiscados, riscados, os céus já jazem, marcados pelas nuvens do mal. Do errado. Do púrpuro. Do pecaminoso. Do mal be(c/m), gelado, derretendo taninos sobre a complexidade dos gostos e cheiros e memórias e texturas de tardes e noites que teimam em reamanhecer – e, sem precisar, parecem dever acabar. Ao fim e ao cabo, nas profundezas desses momentos, únicos de sentido, para além das convenções que tentam regular, proibir, definir por quê e pelo quê estamos aqui nesse planetário chamado terra, lembramos que estamos apenas visitando, como ondas, apenas quebrando e fazendo alguma espuma salgada, quebrando alguns minérios para alimentar a vida, tentando retirar, dar, e aproveitar o máximo dessa experiência que esse firmamento já riscado – por alguma razão que nos foge, nos escapa – nos deu. Nós somos Deus. Se não isso, bem, nada disso – mesmo adicionando-se a manteiga derrentendo sobre o pão na luz nublada da manhã, o abraço frio, os filhos indesejados, o gato doente, os olhares desviados ou de soslaio –, nada, faz qualquer sentido.

Mas talvez assim que deva ser.

Daqui a alguns anos, poderá ou não haver novo alinhamento planetário, donde se verá um terrível e maravilhoso choque que novamente a tudo destruirá em nome do Belo, da Beleza – alguns chamam Arte. Ou então, uma grande e pesada sombra que incitará reais e legítimas dúvídas sobre as possíveis realidades bandeirescas paralelas, que teimam em nos lembrar de tudo que poderíamos ter sido, tudo que poderíamos ter vivido – e não fomos – e não vivemos nssa coleção de frações de segundos com ou sem sentido que acumulamos em sete, oito décadas, não mais. Tudo em nome do firme firmamento que nos cerca e cerceia. Se existem multiversos – como cada vez mais creio existir –, dois seres, líquidos como o amor de Bauman, seguem sendo misturados em cada becker ensejando instáveis e explosivas reações químicas, donde cada interação altera seus átomos originais, gerando energia e calor no processo. O resultado só é conhecido nessa outra dimensão – mesmo que influenciado pelo que ocorreu nessa, seguindo-se algumas teorias correntes.

Embotado como nunca, sei que, por incontáveis razões, não estarei aqui por muito tempo. Como crianças presas em corpos grisalhos, enrugados ou botoxados, seguimos silentes, tentando à alguma maneira, sem entender, ver como e o que devemos fazer para sorrir e voltar a sentir, de forma simulada, projetada, todos os aromas daqueles vinhos nunca sorvidos, nunca plenamente compreendidos, nunca completamente engolidos, digeridos, revolvidos à língua. Ah, o nariz, o retrogosto, por tanto tempo ansiados, por ora cuspido neste profundo recipiente escuro que lembra o dito firmamento que vimos num quadro negro qualquer na infância. Sim, dói um pouco ouvir ressoar seco do eco da saliva batendo ao fundo. Mas, é o que resta: tentar resumir momentos mágicos e singulares em vãs palavras ébrias que jamais conseguirão abraçar o som da respiração ofegante que subitamente se prende ao ver uma estrela cadente riscando – por um instante, uma venda e uma fenda no nosso tempo – o certo-e-errado desse negro céu que aprendemos, de alguma forma – calma, não se assuste – a amar.

Resta fechar os olhos e ver por dentro o espaço sideral, e sonhar com multiversos onde, em algum lugar foi possível extrair muito, muito, muito mais beleza dessa memória poética, bem antes que ela se tornasse kitsch.

Eis que, então, derreto e termino escorrendo por essa amarga grama onde agora repouso meus olhos:

“Quero tempestade....
Recebo vento...
Verto orvalho..
E viro amaranto.
E sigo soprado, para longe de onde vim 
– ainda longe do deserto de sentido que me aguarda”.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Es Muss Sein!

Claro, logo não se despediu. Não poderia ser diferente.

E há tempos hesitara em escrever. Tinha perdido a prática, perdido-se na praxis. Perdido o impetus, o momentum, no continuum, ad nauseam. Havera descoberto que algumas coisas talvez tivessem data para ocorrer no esboço dessa vida sem quadro, afinal. Livros, por ler, sempre poderão ser lidos, não envelhecem, mas os olhos sim: nestes, as córneas se espessam, turvam-se nas vertigens, nas quedas, diga-se, nos desejos de que a queda aconteça. No eterno desejo do eterno retorno, como farsa e como tragédia, levara tempo para ler, sorver - e mais ainda para rabiscar algo que valesse a pena. E cá se foram anos até estar preparado para enxergar e enfrentar a clivagem entre o peso e a leveza.

Noutro dia chuvoso, saudoso do odor ocre das folhas de tabaco enroladas à mão por desconhecidos no além-mar, embotara-se como de costume, embargara a voz, silente, confusa, ouvindo uma canção onde se lia "você só vive duas vezes, uma para você e outra para seus sonhos". 

Ao viver duas vidas, para dentro e para fora, para si e para os sonhos, sempre chamara e chamará Hegel e Marx à baila para bailar, juntos. A naúsea sartreana estivera sempre à espreita e, por vezes, apegar-se aos sonhos de uma vida pretensamente não vivida pode ser vivê-la a fundo em paralelo de outra forma. Ao se desapegar da materialidade do corpo e dos sentidos externos, pode-se, de quando em quando, mergulhar em sensações e viagens do sentido que habitam as profundezas mais escuras, que só fazem sentido naquela imensidão de negro e torpor, e que virariam pó sob o mínimo raio de luz real do sol. De quando em quando, isso acalenta e lembra que se está meio vivo; que decidir todo dia permanecer nesse mundo é um ato de complexidade sufocante, mas que mergulhar nas profundezas de si oferece, por vezes, algum sentido, mesmo que um pouco, aos poucos ou por pouco tempo.

Registrara para si que, sim, não se despediu. Jamais poderia fazê-lo. Como seria possível formalizar o fechamento barulhento de um livro que se quer revisitar ou lembrar para sempre? Naquela estante, cabiam todos os livros do mundo, incluindo poeiras, traças - tudo.

Noutra vez ainda, também sob grave meia-voz, ouvira outro sopro de vida na figura de um trem que parte, sempre, e nunca se alcança: "Oh salgueiro chorão, tossindo meu coração, peça a deus para ver minha sombra, que nos manteve separados por meio de cada revolta ou revelação da minha mente. Você agora acabou de partir, enquanto chego em cada estação. Venha até mim, cedo ou tarde. Aprendi isso por hábito. Agora sei esperar. Venha até mim". As figuras da estação e do trem se misturavam às da felicidade como conteúdo e da tristeza como forma, de Don Juan e de Tristão, da menção à morte de Ana nos trilhos doutro texto, do repetido Franz que remetia à Rilke, tudo então permeava de significados aleatórios diversas folhas daquele atrasado lido livro - que, de fato, fora absorvido em exatos três meses. Percebera finalmente que a conhecera em seus todos outros pseudônimos muito antes de descobrir o verdadeiro nome de Sabina.

Por razão desconhecida, vira sentido naquelas notas musicais ressentidas, apesar das palavras já não terem muito significado: "teve então a vontade confusa e irresistível de uma música enorme, de um barulho absoluto, uma bela e alegre algazarra, que englobaria, inundaria, esmagaria todas as coisas, que anularia para sempre a dor, a vaidade, a mesquinharia das palavras, já que a música era a negação das frases, a música era a antipalavra".

Importante notar: a pausa tem importância ímpar na música - assim como a vírgula no texto, o silêncio na declamação - e, ainda muda, mude-se uma letra, e se muda tudo nela. Enxergara assim: essa longuíssima nota breve, poderá soar como uma quartifusa em mais alguns anos de partitura, ou então um longuíssimo respiro para que se possa ouví-la novamente.

Es muss sein!, diria o maestro. Despedir-se seria imprimir uma barra dupla no papel e passar a viver apenas uma vida, adiantando a parada que o trem inexoravelmente fará na estação kitsch que nos aguarda até a linha final do esquecimento. Resta saber apenas as frases ridículas que estarão inscritas nas respectivas pedras que, no sustentável peso do não-ser, impedirão que voltemos.

Logo, claro, não se despediu. Não poderia ser diferente.