Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

- Fim da sessão.

O Poeta, eterno relator do processo, proferiu:
- Carlos amava Dora. Dora amava Lia. Lia amava Léa. Léa amava Paulo. Paulo amava Juca. Juca amava Dora. Dora amava Carlos. Carlos amava Dora. Dora amava Rita. Rita amava Dito. Dito amava Rita. Rita amava Dito. Dito amava Rita.

O Rei, em suas conclusões primeiras, resumiu:
- Carlos amava Rita e Dora. Dora amava Lia, Carlos e Rita. Lia amava Léa. Léa amava Paulo. Paulo amava Juca. Juca amava Dora. Rita amava Dito. Dito amava Rita.

O Bedel, em suas conclusões segundas, detalhou:
- Carlos amava duas mulheres. Dora também amava duas mulheres - e um homem. Lia, Léa, Paulo e Juca, quatro amores não-correspondidos. Rita e Dito eram os únicos que se amavam.

O Juíz, em suas conclusões terceiras, apressadamente, sentenciou as estatísticas:
- Vinte e cinco por cento das pessoas têm o costume de amar duas mulheres ou mais; trinta e sete e meio porcento das pessoas buscam amar pessoas do mesmo sexo; cinquenta por cento das pessoas jamais foram amadas em vida; vinte e cinco por cento das pessoas possuem a efêmera certeza que se amam.

Leu, então, logo e de pronto, com malicioso contido sorriso, a última conclusão:
- Posto isso, está condenado: quem, a uma ou mais pessoas, ama e não é amado, não ama e não é amado. Quem, por uma ou mais pessoas, é amado e não ama, não é amado e não ama. A estes, senhores, o amor será pro-i-bi-do. Rita, Dito, primeiros réus, estão livres para amar - a quem quiserem... Algozes oficiais: que seja enforcado o resto da quadrilha.

Levantou-se, abruptamente então, o calado ouvinte da sessão, e, sem permissão para falar, bradou retumbante:
- Protesto, meritíssimos! E uma pessoa me ama - mas não muito -, mas amo uma pessoa - e não muito -, pois!

Confusos, corados em coral, os quatro, em tom baritonal, sussuraram entre si:
- Eis que, sobre esse caso, em específico, senhores, as estatísticas parecem nada falar...

E se calaram.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Artigo Único

Inciso XXV:

Prestar assessoria
no serviço de apoio
ao suporte de assistência
na prestação de suportamento assessórico apoiado
a fim de suportar o assistencialismo prestativo apoiador
do assessoramento assistencial na servição de apoiamento assessoral com vistas à servir no prestamento serviçal de assistir a suportação do servimento...

Aos Seus Cuidados:

São Paulo, 26 de novembro de 2010.


Ofício GD/GD/001/10


Excelentíssimo Senhor
Saxarba Abraxas
Departamento Demiânico


Caro Sr. Abraxas:


Para quem se inquieta, há uma grande luta contra a normalidade e a vida comum, trilhada e traçada pelo sistema em que vivemos.

2. Mas não precisamos lutar. É só fechar os olhos e já estaremos com 60 anos, talvez família, talvez filhos, sobrevivendo, bem ou mal.

3. Para quem quiser lutar - primeiro interna, depois externamente -, o percurso é, sim, terrível e extremo. Extremamente belo e extremamente horrendo.

4. Aos que desejam lutar, precisam adquirir doses cavalares de algum tipo raro de radicalismo, o que tudo vê, para dentro e para fora, a fim de adquirir o ímpeto de, de fato, lutar.

5. Quando se quiser desistir, como a maioria - e tudo bem, pois é normal desistir -, aí, finalmente, fica-se em paz.

6. Por enquanto, não quero paz.


Permaneço à disposição para qualquer informação complementar e aproveito a oportunidade para reiterar meus protestos.


Discordialmente,


Gato Desertor

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Devaneios Noturnos

(...)


E pensava e pensava, lasciva, rodopiando sem se lembrar: quantos eram, afinal, os tipos de amor? Existiria mais de um? E se fosse de um tipo só, haveria vários do mesmo tipo? Se sim, ao mesmo tempo ou em sequência? Sobrepostos ou substitutos? Vivos, mortos, moribundos, ressurretos? Como dar nomes iguais para sentimentos tão dissentidos e distâncias tão distintas?

Lembrou-se, então, das tantas malogradas histórias de enrugados casais que jamais viveram ao lado do amor de suas vidas. E que foram felizes para um sempre. Ou melhor e pior, por breves e bons momentos; como todos, uns mais e outros menos.

Vieram, então, como de sopetão, as palavras de Dalva. Uma negr'alma de olhos penetrantes e voz mui suave, assobiante:

"É esse meu amor nada senão uma eterna busca por alguém com todos teus efeitos, que prescinde da tua grandíssima desqualidade de amares a mim sem amares a ti nem a nós?..."

O firmamento parecia menor que a distância que ela pensava separá-la das estrelas que procurava. Ouviu o vento, em linda valsinha, zumbir pelos ouvidos. Sentiu, logo, Três Marias, um par d'olhos, uma boca, fitando-a, sem respiro. Nem mesmo encontrou o trio de estrelas e começou a chuviscar. Os leves pingos explodiam docemente sobre a órbita de seus olhos, irisados, que, logicamente, fecharam-se de pronto. Podia ouvir o assobio de Dalva, sem ver o quanto o céu descia e se aproximava para beijá-la. E o quanto o céu lembrava o véu démodé que ela usava desde tempos que sua memória já não se lembrava mais.

Teve certeza de que, a depender daquela noite, nunca mais encontraria o amor de sua vida. Nem saberia se era único, ou de qual tipo poderia ser. Nem se ele nasceria da morte de outro, ou se poderia coexistir, mesmo diminuto, mesmo sabendo de coisas que mudam de essência e que sempre mudam de nome e endereço.

Sabia que não havia tempo a ganhar.

Sabia que não havia tempo a perder.

Sabia que teria que reescrever, à saliva e sangue, a bruta fatalidade daquela noite que levou Dalva, que se foi sem desvendá-la o mistério do amor.


(...)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Ácido Parasemântico

PARA
*SEM
PARA
*SEM
PARA
*SEM
[***]
PÁRA
..*
...*
..*
.*
..*
__ã________ voltar.
_____q_____ sair.
___o_______ dormir.
N__________ acordar.
_______e___ amar.
______u____ sofrer.
_________r_ querer.

__________o.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Tratado sobre um Salgueiro Chorão

Defronte à sua velha Olivetti, olhou de relance sua pilha amarelada de papéis, tornou a fitar as páginas cândidas e silenciosas, e perguntou: seria Ele mais feliz por escrever tão bem?

E continuou, datilografando em sua mente: ou, simplesmente, conseguiria exprimir em palavras sentimentos e momentos tão complexos, tão lindos, e tão tristes, que nós mesmos já sentimos e vivemos, e que, por não tentarmos - ou, melhor, não conseguirmos - desnudá-los pela linguagem, ainda conseguimos sentí-los, vivos ou moribundos, de alguma forma, numa remota memória inescrevível...?

Iniciou, então, o seu tratado. O mesmo já iniciado em conversas interiores nos quartos obscuros e obnubilados de sua mente, que certamente não daria conta de todo aquele turbilhão de sentidos que a corroíam já há muitíssimo tempo.

"A cada palavra escrita e falada, mata-se, em geral sem querer, toda uma teia de sentimentos que a motivou. Como se o efeito matasse a causa, a criatura mata o criador. Resume-o a um mero sistema de códigos de letras, fonemas e regras, lindas, quanto mais rebuscadas e inesperadas forem as combinações de signos e significados. E a isso, chamamos, exasperados, arte, literatura. Cristalizam-se momentos, sentimentos, criações lúdicas e fantásticas, escondendo, assim, uma grande redução inerente ao processo da produção concreta, de dentro para fora. Uma grande violência contra nós mesmos, como o expremer de sumos de distintos frutos, que só conseguem transpor sabores ínfimos e minúsculos à mistura vitaminada, concreta, saborosa - posto entretenidora -, mas falsa - posto reduzida. Não vemos o vermelho, o azul, o amarelo, e o verde no branco, mesmo que nos digam que cada um está lá. E aquele laranja tão vivo, tão intenso, jamais será admirado plenamente, pois fora misturado e transformado: agora, é, simplesmente, branco. Jogamos, em palavras, sementes de nós ao vento, na espera de nascermos de novo, frutificando em outro jardim, como se elas carregassem em si a essência de cada um de nós, cada um, um grande salgueiro chorão, essencial apenas, e tão apenas, na nossa totalidade. Autores, em processo de ensandecência, escrevem para entender a si próprios, e ignoram a violência de seus atos. Outros, já ensandecidos, fazem-nos com consciência, e mutilam suas mentes sabendo que nunca se entenderão mirando suas próprias artes. Vomitam não partes inteiras de si, re-encaixáveis entre si como um quebra-cabeça, mas fragmentos mais ou menos aleatórios de uma existência complexa, irreconstruível do lado de fora. Mais: com o tempo, irreconhecível. Olham suas obras, e não se enxergam mais nelas, pois o momento do rompimento do elo de ligação entre a produção interna e seu parto para o mundo exterior e limitado da arte posta, concreta, é demasiado fugaz, quase instantâneo. Fragmentos do ser nunca comporão o todo, posto que ele não o é, já que sempre em mutação, e nem existe como todo fora de seu interior...".

E parou, subitamente, confusa. Já não sabia mais como continuar. A única conclusão de tudo aquilo era de que tinha certeza de que havia se tornado um salgueiro chorão. Conseguia sentir a seiva correr em suas veias. Seus cabelos, longos e verdes, pesavam sobre a cabeça, enrijecida pela madeira que cobria sua antiga face. E parou de escrever, não apenas por ser muito difícil datilografar com galhos tão grandes e espessos. Tivera que virar uma árvore para escrever dentro de si mesma, em anéis concêntricos e curvelíneos do interior de seu sólido tronco, a compreensão de sua própria história. Era isso, ou transformar-se em um vivaz animal - não humano -, capaz de, com tamanha força, adaptar a realidade de si àquela resumida e violentada fantasia de si, linda, fácil e irreal. E, finalmente, dar vida às palavras que preencheram, por tantos anos, aqueles ocres maços de papel de outrora.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

1-1=1/2

Parece que há tanta coisa a lhe falar...

Tanta coisa.
Tanta coisa que talvez nunca seja necessário.
Talvez nunca haja porquê.
Talvez não importe.
Talvez não.

Tal.
Vez.

Até lá.
0 risco daquela cinza vida medíocre.
Aquela mesma dos pesadelos da vida real.

Te encontro lá.
Afogado na terceira pincelada de um óleo ou um pastel.

Sem.
Graça.

N'alguma sala de espera.

Qual.
Quer.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Valseante

Piscava sim
Mui lentamente
[dum entrelaçar de cílios sem igual]

Sorria sim
Mui sorridente
[dum brilhantismo tórrido e mortal]

e eram quilômetros
e eram quilômetros
[duma distância curta e desigual]

Fitava assim
Muit'impotente
[dum lance tímido quis ser fatal]

Quisera surdo ser - ou ensurdecer

Mas lá ficou
E lá ficou
E lá ficou
Até o final

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Silência

E Silência era o seu nome: SI-LÊN-CIA.

[.agradável
confusa.Terna
insensível.Cinética
potencial.Familiar
estrangeira.Novíssima
nostálgica.Brilhante
opaca.Aquietante
revoltante.Sem fim
sem começo.]

Qual jogo comedido de palavras vãs, insãs, e vilãs?

Num bandeirar constante - o eterno risco de ter podido ser o que jamais fora
Num pendular constante - o eterno lastro assegurante por mas só mero tenro apreço

E arisca - à risca - nunca arrisca.

[silência]

Bem.
Eu também.
E, por isso - e só por isso - permaneço.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Felpas

Felpudo era o ar
Loquaz e renitente
Remanescente posto nascente
Ora minguado ora potente
Qual tal dormente inquieta o par

Felpudo era o som
Mordaz e crocitante
Excitante posto distante
Ora calado ora corante
Tenro semblante inquieta o tom

Felpudo era o odor
Jamais tão doce tanto
Duro aguanto posto que amanto
Ora perlado ora de santo
Sagrado canto inquieta a dor

Sem felpa, o resto:

[Sentido no par]
[Sentido no tom]
[Sentido na dor]

Sem tido ter
Qual ocre bel-prazer
De ter de novo
Aquele novo resto de nós