Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Tratado sobre um Salgueiro Chorão

Defronte à sua velha Olivetti, olhou de relance sua pilha amarelada de papéis, tornou a fitar as páginas cândidas e silenciosas, e perguntou: seria Ele mais feliz por escrever tão bem?

E continuou, datilografando em sua mente: ou, simplesmente, conseguiria exprimir em palavras sentimentos e momentos tão complexos, tão lindos, e tão tristes, que nós mesmos já sentimos e vivemos, e que, por não tentarmos - ou, melhor, não conseguirmos - desnudá-los pela linguagem, ainda conseguimos sentí-los, vivos ou moribundos, de alguma forma, numa remota memória inescrevível...?

Iniciou, então, o seu tratado. O mesmo já iniciado em conversas interiores nos quartos obscuros e obnubilados de sua mente, que certamente não daria conta de todo aquele turbilhão de sentidos que a corroíam já há muitíssimo tempo.

"A cada palavra escrita e falada, mata-se, em geral sem querer, toda uma teia de sentimentos que a motivou. Como se o efeito matasse a causa, a criatura mata o criador. Resume-o a um mero sistema de códigos de letras, fonemas e regras, lindas, quanto mais rebuscadas e inesperadas forem as combinações de signos e significados. E a isso, chamamos, exasperados, arte, literatura. Cristalizam-se momentos, sentimentos, criações lúdicas e fantásticas, escondendo, assim, uma grande redução inerente ao processo da produção concreta, de dentro para fora. Uma grande violência contra nós mesmos, como o expremer de sumos de distintos frutos, que só conseguem transpor sabores ínfimos e minúsculos à mistura vitaminada, concreta, saborosa - posto entretenidora -, mas falsa - posto reduzida. Não vemos o vermelho, o azul, o amarelo, e o verde no branco, mesmo que nos digam que cada um está lá. E aquele laranja tão vivo, tão intenso, jamais será admirado plenamente, pois fora misturado e transformado: agora, é, simplesmente, branco. Jogamos, em palavras, sementes de nós ao vento, na espera de nascermos de novo, frutificando em outro jardim, como se elas carregassem em si a essência de cada um de nós, cada um, um grande salgueiro chorão, essencial apenas, e tão apenas, na nossa totalidade. Autores, em processo de ensandecência, escrevem para entender a si próprios, e ignoram a violência de seus atos. Outros, já ensandecidos, fazem-nos com consciência, e mutilam suas mentes sabendo que nunca se entenderão mirando suas próprias artes. Vomitam não partes inteiras de si, re-encaixáveis entre si como um quebra-cabeça, mas fragmentos mais ou menos aleatórios de uma existência complexa, irreconstruível do lado de fora. Mais: com o tempo, irreconhecível. Olham suas obras, e não se enxergam mais nelas, pois o momento do rompimento do elo de ligação entre a produção interna e seu parto para o mundo exterior e limitado da arte posta, concreta, é demasiado fugaz, quase instantâneo. Fragmentos do ser nunca comporão o todo, posto que ele não o é, já que sempre em mutação, e nem existe como todo fora de seu interior...".

E parou, subitamente, confusa. Já não sabia mais como continuar. A única conclusão de tudo aquilo era de que tinha certeza de que havia se tornado um salgueiro chorão. Conseguia sentir a seiva correr em suas veias. Seus cabelos, longos e verdes, pesavam sobre a cabeça, enrijecida pela madeira que cobria sua antiga face. E parou de escrever, não apenas por ser muito difícil datilografar com galhos tão grandes e espessos. Tivera que virar uma árvore para escrever dentro de si mesma, em anéis concêntricos e curvelíneos do interior de seu sólido tronco, a compreensão de sua própria história. Era isso, ou transformar-se em um vivaz animal - não humano -, capaz de, com tamanha força, adaptar a realidade de si àquela resumida e violentada fantasia de si, linda, fácil e irreal. E, finalmente, dar vida às palavras que preencheram, por tantos anos, aqueles ocres maços de papel de outrora.

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