Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

sábado, 21 de abril de 2012

Ilha das Cobras

O que ficaram foram as marcas de seus coturnos impressas na lama. Oito chanfros cada uma com ângulos perfeitos na terra que se enchiam repletamente com as grossas gotas d´água, frias, plúmbeas e pesadas como as agulhas de ósmio que ficavam guardadas na pequena caixa perolada sobre o criado-mudo de seu avô, perto do gramofone de bronze que repousava perto de lá. Perguntava-se se era mesmo o certo prosseguir com seus passos mata adentro, sem se preocupar em revisitar seus próprios rastros, que seriam fatalmente apagados pela erosão pluvial daquela e de outras noites que viriam. Já sob a proteção de imensa folhagem, circundado por gotas mais grossas ainda, acumuladas pela longa viagem caída de copa em copa até chegar no lamaçal do solo, olhou o lago traumatizado pelas bilhões de gotas que caíram naquela noite. Acabou adormecido em posição fetal costumeira, recostado no tronco, indiferente ao perigo oferecido pelo fato de estar na Ilha das Cobras. Acordou no dia seguinte, ironicamente, quando o último pingo molhou a terra já amanhecida pela aurora de um ambicioso sol, gerando um silêncio ensurdecedor enquanto a temperatura começava a aumentar lentamente. Cerrou os olhos ao olhar o sofrido lago, receando vê-lo desfigurado pelo excesso da tormenta da noite anterior, trazendo mais daquilo que justamente o definia como lago. O que enxergou foi sua superfície plana, num espelho que refletia a cor do límpido céu de forma que era quase impossível descobrir onde começava um e terminava o outro, não fossem pelas leves patas dos insetos que caminhavam sobre sua superfície, plena e irrompível. Ousou sorrir de forma também leve, mesmo que torta, ao concluir que o que é feito de substância líquida não pode mesmo ser violado ou marcado pelo que também é líquido. As marcas de suas duras solas de borracha que tanto o orgulhavam em suas aventuras pelas campinas eram alvo fácil para aquilo que sempre acabava por desmanchar tudo de sólido que havia sido construído pela consciência e pelo acaso. Sentiu grande vazio, como sempre, ao ter esses tipos de pensamentos e reencontros consigo. "Como é ser líquido? Como é sentir o impacto severo das marcas da vida e da morte e voltar ao estado letárgico do repouso e do esquecimento?", pensou. Nem mais cheio aquele lago estaria. A água nova se misturou ao lodaçal antigo ou evaporaria pelo calor do sol de outros dias. Levantou-se com dificuldade, apoiado pelas cascas que descolavam do hospitaleiro tronco que o recebeu tão bem por uma noite. Quis resolver que, dali em diante, não gastaria mais suas poucas alegrias em revisitar suas marcas nos solos pelos quais passou, mas achou a empresa difícil demais. Havia perdido o controle. No afã de aprender a se desprender do amor, havia desaprendido a amar. Havia pensado que olhar novamente o lago que sempre o inspirou a buscar a magia da transformação da vida em obra-de-arte poderia ser reconfortante. Quem sabe aquelas águas verdes ainda o reconheceriam. Não só lembrariam das tardes em que entrava nelas nu, mansamente, tateando sua superfície com zelo e anseio em romper toda aquela fluída capa protetora da tensão superficial que sempre escondeu os profundos segredos daquele pedaço escuro e molhado de mundo; não só lembrariam: convidariam para um refrescante mergulho a hidratar seus pulmões com parte de seus mais obscuros segredos. Mas não viu nada disso. Não viu risco à morte nem à vida. Viu um lago que só sabia ser lago. Pior: um lago que só queria ser lago. Inertemente aberto e fechado a tudo e todos. Não tinha a força das rochas imponentes e impenetráveis que jaziam no caminho para as montanhas e tampouco transmitia a beleza fulgente das frágeis flores alaranjadas que se agitavam perto dali com a brisa que soprava do sul. Era um lago que padecia da mesma doença de todas as outras águas, rios, mares, poças ou oceanos: muitas almas podem envenená-los, alterar seus cursos, pescar seus peixes, explorar parte dos seus minerais; mas somente o sol, pela proximidade e pela distância, é capaz de secá-lo ou congelá-lo a seu belprazer. . . . Por já ter passado por lagos secos e arenosos, seguiu sua viagem fugindo dos trópicos em busca de um lago cândido, sólido, mas fofo e maleável, donde poderiam, de quando em quando, surgir talos verdejantes e donde possa, de quando em quando, também deixar as marcas de suas botas ou mesmo usar parte daquela massa branca para fazer esculturas que só serão desfeitas quando o sol brilhar demais, num tempo em que ele já não estará mais lá para ver sua arte transformada - num primeiro ato, em translúcida água; num último, em invisível vapor.

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