Só para raros.

[Entrada ao preço da razão]

quinta-feira, 5 de março de 2020

Astenofonia

Conheci Agnes por acaso e por meio de Kundera, amigo recente que se foi apresentado em uma livraria no passado. Foi ela, que, ao se preparar para o funeral do pai, apresentou-me, sem bem o querer, imagino, à Gustav Mahler, que gostaria de apresentar a vocês para falar-lhes ainda de uma outra pessoa, que acaba de partir.

Deixo ela, Agnes mesma - ou Kundera, começar:

"Quando seu pai morreu, Agnes teve que organizar o enterro. Ela não queria que a cerimônia tivesse discurso e queria que a música fosse o 'Adágio' da 10ª Sinfonia de Mahler, da qual seu pai gostava especialmente. Mas essa música era horrivelmente triste e Agnes temia não conseguir reter as lágrimas durante a cerimônia. Considerando inadmissível chorar em público, pôs no seu aparelho de som uma gravação do 'Adágio' e a escutou. Uma vez, depois duas, depois três. A música evocava a lembrança de seu pai, e ela chorou. Mas, quando soou pela oitava ou nona vez na sala, o poder da música enfraqueceu e na décima terceira audição Agnes ficou tão comovida como se tocassem diante dela o hino nacional da Paraguai. Graças a esse treinamento ela não chorou no enterro".

Uma ideia por trás dessa passagem é a de que é possível ressignificar tudo. Inclusive ver beleza no que muitos julgam difícil, triste, pesado, complexo, naquilo que dói aos ouvidos, aos olhos aos sentidos. De que é possível que o eixo belo-feio transite em plano diferente da alegria-tristeza, pois tudo que seja - opinativo, sentimental - é sim definido em grande parte por uma cultura num dado espaço/tempo. De que é possível transformar e calibrar os sentidos para enxergar, ouvir e sentir coisas 'tristes' onde todos se alegram, assim como se emocionar e ver coisas 'alegres', onde todos se entristecem. De que é possível aprender a ver e ouvir certas frequências, invisíveis e inaudíveis para grande parte das pessoas, e se emocionar com a beleza de pedras renitentes, cactos resilientes, desertos silentes. De que Príncipes Mishkins capazes de enxergar o belo invisível passarão, inúmeros, por esse mundo, desapercebidos, sendo tidos por idiotas que merecem a cruz ou o ocaso.

Ao transformá-la em Hino do Paraguai, Agnes não prosseguiu no passo adiante: enxergar a beleza suprema da obra-prima feita por Mahler. Escrita no verão de 1910, o autor partiu pouco depois e não conseguiu terminar sua 10ª Sinfonia. Tudo o que temos são possíveis interpretações de uma obra absolutamente dissonante, cacofônica - incompleta.

Outras ideias que podemos depreender dessa e tantas outras passagens da pena de Kundera é que não controlamos a nossa morte - e nem a nossa imortalidade quando continuamos a viver em outros por nossas obras, completas ou inacabadas. E a de que há Belezas escondidas em cada parte desse mundo - e um bom sentido para a vida é tentar encontrá-la nos mais absurdos e recônditos lugares.

Pois assim foi a passagem dele, a quem queria ao final apresentar, por aqui: 37 anos de notas agudíssimas e dissonantes - exatamente como a incompleta 10ª de Mahler. Desafiados a criar sentido nas partes faltantes da dura partitura que desafia o músico a interpretá-la corretamente até o final, entre sublimes pausas, síncopas, contrapontos e bruscos movimentos que de súbito iam das mais densas tempestades às mais calmas brisas sopradas pelos sorrisos fáceis daqueles que vêm ao mundo em missão absoluta de paz, fomos tocados: transformados em alguma outra matéria, não melhor, não pior, diferente. Por isso e por ele, talvez também tenham sido transformados, mesmo que pouco, aqueles que indiretamente ouviram essas tortas notas em (r)evolução. São elas que trazem lágrimas de emoção a quem conhece nossa história a fundo: uma de amor, dedicação, respeito e empatia extremos de pais enlevados em dedicação absoluta, que assisti, participei, sorri, chorei - e aplaudi - de muito perto.

E se uma pessoa, como arte, pode se tornar de fato imortal, é pelas emoções que causa, pelas coisas e pessoas que toca e transforma quando passa.

Foi isso que Mahler fez com sua 10ª Sinfonia, inacabada, completada por outros. Jamais tocará na propaganda no intervalo da novela. E há de se ouví-la várias e várias e várias vezes até se começar a entender a difícil beleza que nela se esconde, pois, pelo preço da razão, a entrada para esse teatro mágico é de fato só para os raros.

Por toda essa sinfonia, meu irmão, agradeço-te eternamente. Se não posso mais tocar seu rosto, te toco adiante em forma de música, como me veio, aos que eventualmente conseguirem te ouvir na alegria, na tristeza, na beleza extrema, como cá dentro sempre te ouvirei:

www.youtube.com/watch?v=vHyV8noUXC0 

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